quinta-feira, 4 de julho de 2013

Body Talk




Imagine que o seu corpo seja um circuito elétrico (bastante complexo!). Existem muitos fusíveis distribuídos por todas as correntes ou linhas de eletricidade nesse circuito. Muita energia estoura fusíveis, e com isso há um corte de comunicação ou eletricidade no circuito.
No corpo humano, stress causa o estouro de nossos "fusíveis" internos, bloqueando o fluxo de comunicação em sistemas do corpo. O Body Talk encontra o que está bloqueando as linhas de comunicação do seu corpo para que ele possa restabelecer seu equilíbrio e saúde.

O que é Body Talk e como funciona?

Body Talk é baseado no princípio de que o seu corpo tem toda a sabedoria e capacidade para se curar.

Então, porque ficamos doentes ou fora de equilíbrio?

O corpo pode se curar e manter excelente estado de saúde quando suas linhas internas de comunicação estão intactas. O que acontece é que stress, seja físico (acidentes, pancadas, etc.), ambiental (poluentes, químicos, vacinas, medicamentos, campos eletromagnéticos, etc.), emocional, psicológico, ou espiritual, interfere e bloqueia essas linhas internas de comunicação do corpo. Desta forma, o corpo não é capaz de compreender claramente o que realmente está ocorrendo e perde sua eficiência em restabelecer seu equilíbrio e curar processos de doença.

Como o Body Talk pode ajudar?

Com o Body Talk, nós encontramos o que está bloqueando as linhas internas de comunicação do seu corpo e equilibramos esses fatores para que o seu corpo possa se curar. Body Talk tem criado resultados incríveis em diversos tipos de desequilíbrios físicos (dor crônica, reabilitação, diabetes, distúrbios hormonais, problemas respiratórios, cardiovasculares, digestivos e imunológicos), emocionais e psicológicos (depressão, falta de energia e motivação, vícios). O Body Talk trabalha todos os níveis de energia do corpo-mente, sendo muito utilizado para crescimento pessoal e espiritual.

O que devo esperar de uma sessão de Body Talk?

As sessões são geralmente facilitadas em uma cama de massagem, onde o cliente tem a oportunidade de entrar em um estado de profundo relaxamento. O terapeuta do Body Talk segura a mão do cliente e cria um sistema de comunicação com a sabedoria inata do corpo do cliente, através de uma forma de kinesiologia aplicada. Desta forma, o terapeuta recebe informação acerca dos fatores que devem ser equilibrados, e em que ordem para que o corpo do cliente possa funcionar com mais equilíbrio e saúde. Essa forma integrativa de cuidado da saúde equilibra causas físicas, emocionais, psicológicas e espirituais que estão por trás do processo de doença.

            http://www.ocbodytalk.com/tecnicacortices.html

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Esta primavera


 

Luci Afonso

Esta primavera vou ficar em casa.

Deitada no sofá, ouço o grito suicida das cigarras. Debruçada na varanda, recolho pingos frescos de chuva, os primeiros e os últimos. À noite, a lua atravessa a persiana do quarto e ilumina meu corpo, enrodilhado no lençol de quinhentos fios egípcios.

Companhia, só quero a do filho, da mãe e do gato, prolongamentos espontâneos de mim. Vozes, somente a dos fantasmas queridos, das crianças bem pequenas ou dos velhinhos solitários. Carícias, apenas a do vento que gentilmente me refresca o rosto.

Os homens não me olhem: estou feia. Os amigos não me procurem: estou ausente. Para quê encontrar pessoas? Já conheci todas que posso suportar.

Não preciso de fatos — o mundo gira sem mim. Só me interessam a folha caída na grama e o poema sussurrado pela árvore antiga.

Desvaneço nesta primavera invertida. Embrenho-me na profundidade escura da terra para implodir meu canto, até que a morte branca do ipê venha me nutrir de seiva bruta para a próxima estação.  

                                               Outubro de 2010

Tudo sofre ao meu redor



Luci Afonso

Tudo sofre ao meu redor.
O cãozinho que atravessa a rua com o dono.
A velha que compra a máscara antirrugas.
O jovem que ri alheio aos perigos da alegria.
Meu sorriso pouco e falso.

A mensagem mais corriqueira me parece aviso dos anjos.
Será que vou morrer e já me despeço?
Estou só alma.
 Maio de 2012

Droga de bom!



Luci Afonso

— Exercício físico é muito bom — diz a Dra. Gladys, depois de conferir meus recentes exames de laboratório. Os níveis de colesterol estão desregulados: o bom está baixo, o ruim está alto e o total está 50 pontos acima do normal. Além disso, a medição da cintura revela que estou na faixa de risco de ataque cardíaco fulminante.
— Experimente caminhar — ela sugere, como vem fazendo há quinze anos.
Devido à prática regular de esportes, a Dra. Gladys tem a silhueta enxuta, a pele fresca, excelente disposição e flexibilidade invejável — ela se abaixa para pegar remédios sem nenhum estalo de ossos e se ergue com a mesma agilidade. (Quando me agacho por qualquer motivo, as juntas estalam em sinfonia e travam em seguida, obrigando-me a pedir ajuda para levantar.)
Preciso perder, no mínimo, quinze quilos. Chega de pizza napolitana grande e guaraná de dois litros! Adeus, Big Tasty e torta de maçã do McDonalds! Adeus, quatro unidades de banana caramelada no China in Box! Bem-vindas, folhas de alface crespa do Verdurão! Bem-vindo, pão integral doze grãos 120 calorias!
Chega de sedentarismo! Não posso adiar mais: na sexta-feira de sol, dirijo-me ao Parque Olhos Dágua para a primeira caminhada do resto da minha vida.
— Quão motivada você está? — pergunta meu filho.
— Motivadíssima!
— Hum...
Caminho duas superquadras até o parque e escolho o percurso à direita. Logo de início, tento seguir o ritmo vigoroso das pessoas que passam conversando, a respiração tranquila como se estivessem dormindo. Balanço os braços com ímpeto, imitando os atletas que parecem experientes.
Muita gente me observa. Talvez por eu ser estranha no local, talvez pelas bermudas pregueadas, que parecem uma saia balonê, ou pelo tênis velho, a sola do pé esquerdo desmilinguida. Encaro todo mundo com firmeza e com um leve sorriso, como uma frequentadora assídua.
Tudo vai bem até que começam as subidas. Venço a primeira, a segunda, a terceira, sempre mentalizando a queima do colesterol. Na quarta, as pernas já não obedecem, e começo a cambalear. Paro, a camiseta encharcada de suor, a respiração ofegante, a boca seca, e finjo que estou me alongando.
— Ânimo, filha! — diz o senhor em ótima forma, cabelos em neve.
— Coragem, tia! — incentiva o jovem que rebola a passos largos no short apertadinho.
— Quer que a gente chame o socorrista, vó? — oferecem duas simpáticas adolescentes, que flutuam leves como garças.
Prefiro ignorar as manifestações de solidariedade esportiva. Respiro fundo, volto num ritmo mais lento, esgueiro-me até o portão e me arrasto até em casa.
— Já?
— Quanto tempo eu andei?
— Trinta minutos.
Impossível! Pareceram duas horas.
— Quão cansada você está?
— Cansadíssima!
— Bem, é que, na verdade, você ficou de completar com a esteira.
— Depois eu faço.
— E o pilates?
— Amanhã.
— Hum...
Desabo na cama, sem coragem de tomar banho. Penso com desespero na próxima caminhada. Antes de desmaiar pelo cansaço, tento me lembrar das sábias palavras da médica: exercício físico é muito bom, exercício físico é muito bom, exercício físico é...! (Se não funcionar, já me preveni: vou tomar o seca-barriga indicado pela moça do Verdurão.)               
                                                                
   Março de 2013


A velhinha trêmula



Luci Afonso

Dona Flor desce do carro com o auxílio do motorista e da cuidadora. Está atrasada. Caminha a passos de bebê até a porta, cumprimenta todas num fiapo de voz e é instalada na cadeira mais próxima do lavatório.
As meninas estão a postos.
— Tratamento completo hoje, Dona Flor? — pergunta Marijô.
— Sim, por favor, querida. Mais a hidraaaatação.
— A raiz tá grande, né?
— É, minha filha, faaaalta de tempo.
— Loira ou morena?
— Loiiiiríssima.
— Tem festa hoje?
— Não, só manuuuutenção.
Dona Flor empaca nas vogais. As meninas já estão acostumadas.
Os cabelos são ralos como os de uma jovem espiga de milho. No alto da cabeça, um pequeno espaço descoberto, que Marijô disfarça penteando os fios de lado.
— Vai pintar a unha, Dona Flor? – Sônia se aproxima com os apetrechos de manicure.
— Sim. Tem o Deeeeesejo?
— Novinho!
Ela estende as mãos:
— Desculpe, estou treeemendo um pouco hoje.
— Tudo bem. É bom que dá uma sacudidinha — brinca Sônia.
A pedicure traz a bacia com água morna.
— E o pé, a senhora vai pintar? — pergunta Edileusa.
— Claro, querida, Deeeeesejo! Falar nisso, cheeeegou meu creme, Rose?
— Qual é mesmo? — quer saber a dona do salão.
— Reeeenew intensive. O meu está quase acabando.
— Mando levar assim que chegar.
— Ele é muiiiito bom — ela se examina no espelho. Não há mais espaço para rugas, mas elas estão lisinhas, como se tivessem sido engomadas a ferro.
— Hora dos remédios — lembra a cuidadora.
— Que saco essa remedaiada! Me dá a baaaaaanana.
Ela só consegue engolir a dezena de comprimidos que toma diariamente junto com pedaços de banana. A cada comprimido, faz uma pausa dramática e uma careta.
— É triste fiiiiicar velha, minha filha. É uma doençada que a gente descoooobre...
Dona Flor Prazeres dos Santos tem oitenta anos supervividos. Frequenta o Rose Cabeleireiros há pelo menos duas décadas, quando ainda não tinha o Parkinson. Nesse período, perdeu parte dos movimentos, teve de acostumar-se com o tremor, com a dificuldade na fala e na deglutição.
A vaidade, porém, permaneceu intacta. Na agenda cheia, a manhã de sexta é reservada para cuidados com a beleza. Os outros dias ela dedica aos cuidados com a saúde, à ginástica para idosos no parque, a reuniões dos grupos literários e comunitários de que participa e a providências diversas. Na maturidade, publicou alguns livros que não conseguiu vender e que ainda distribui aos amigos ou dá como presentes de Natal (faltam apenas quatro caixas, com cem livros cada uma). Ainda gosta muito de ler, mas já não escreve.
À noite, Dona Flor não perde o Jornal Nacional. Depois, entra no Facebook, onde tem 231 amigos. Gosta de atualizar seu perfil com fotos tiradas pela neta. Curte, compartilha e, às vezes, posta alguma reflexão sobre a vida, geralmente tirada dos livros. Só não tem paciência com jogos idiotas.
Bom mesmo é o sábado, que passa com a única neta, agora com 22 anos. É verdade que ultimamente ela traz o chato do namorado, mas Dona Flor não deixa que ele estrague o dia. Simplesmente o ignora, enquanto discute com a neta as notícias da semana.
— E a Dilma, que vaaaaia, hein? E a maniiiiifestação, você não está indo, né, filha? E o Neymar, de beeeesta só tem a cara!
No domingo... Bem, no domingo, Dona Flor descansa porque já não tem idade nem saúde para fazer extravagâncias.                                                          
Junho de 2013

Ando esquecendo as palavras



Luci Afonso

Ando esquecendo as palavras. Ontem, em meio a uma onda de calor, procurei aquele objeto feito de varetas e de papel fino, geralmente rendado, que as damas usavam para se refrescar no século XIX. Encontrei-o numa prateleira, meio escondido entre os livros. Abanei-me longo tempo antes de lembrar como se chamava.
No Verdurão, esqueci o endereço para mandar entregar as compras. Era 210 ou 211? Apartamento no quarto andar, que número? Do telefone de casa, só sabia o prefixo. Ao preencher o cheque, forcei a memória antes de perguntar à moça do caixa em que ano estávamos. Pedi à empregada que cozinhasse  aquele tubérculo cor de vinho, meio duro, e o servisse em rodelas, junto com a salada. Ela entendeu perfeitamente.
Em conversas com amigos, com frequência interrompo o falante para dizer o que estou pensando, porque no minuto seguinte terei esquecido. Depois lembro de novo, mas o assunto já é outro. É assim: lembro, esqueço, lembro, esqueço, esqueço.
Parei de escrever. Redigi uma mensagem de despedida para meu blog e cogitei tirá-lo do ar. Logo comecei a ter aquela sensação esquisita, aquela agonia que dá a gente não sabe por quê. Um peso no peito, um cansaço nos ombros. Consultei o cardiologista, que ouviu atentamente a descrição dos sintomas. Dei sorte em encontrar um médico com capacidade de abstração. Ele diagnosticou com facilidade a síndrome da abstinência de palavras, muito comum em determinados grupos de risco, e prescreveu o remédio mais eficaz: um parágrafo três vezes ao dia, de início, com aumento gradativo da dose até alcançar a melhora desejada.
O tratamento começa a surtir efeito. Neste domingo, acordei com vontade de escrever e corri para o computador, com medo de esquecer a vontade. Lembrei das pessoas que precisam do que eu digo. Aconteceu também de ler as palavras de uma amiga, saídas daquele órgão que bate sem parar e bombeia sangue para o corpo. As palavras dela despertaram as minhas, e por isso estou aqui.
Acontece de repente, igual a quando a gente reencontra o que havia perdido, ou igual a quando o sol da manhã invade o apartamento que acabou de acordar. Daqui a pouco lembro o nome dessa coisa boa, que só a palavra me dá.

                                                                                              Junho de 2013

             Imagem:      http://projetandopessoas.blogspot.com.br/2013/01/rigidez-x-firmeza.html

Enquanto




Luci Afonso


Após quatro anos, três meses e dezoito dias, resolvo começar a fisioterapia indicada pela neurologista. Antes, porém, tenho de fazer uma avaliação.
Minha mãe avisa:
— Vou também, para você não desistir.
— Não precisa.
— Precisa, sim.
Com cinquenta e dois anos nas costas, sou conduzida por uma velhinha de setenta e quatro, com 20% de visão no olho esquerdo, zero de audição em ambos os ouvidos, 80% de entupimento na coronária, hipertensão e diabetes.
— Veio trazer a nenê? — brinca a recepcionista.
— Vim.
A terapeuta é gentil e atenciosa, mas tenho dificuldade em abordar o problema. Minha mãe ainda não acredita no diagnóstico.
— Não tem lógica — ela argumenta.
— Por que não, mãe?
— Porque Deus é justo. Não ia te mandar essa merda.
Justo ou não, descobri que tenho uma doença incurável, mas não fatal, e que exige diversos cuidados.
Terminada a avaliação, agendo dez sessões, a primeira já amanhã.
— Você quer que eu te traga?
— Pode deixar, mãe.
— Você vem sozinha?
— Venho.
— Vem mesmo?
— Juro pela senhora.
Na tarde seguinte, ao descer para pegar o táxi, encontro-a sentada na portaria.
— Eu não tinha nada para fazer. Quero ver como é essa tal de fisioterapia — ela dá a mesma desculpa nas nove vezes seguintes.
No amplo salão cercado de vidro, um bando de velhinhos trêmulos exercita braços, mãos, pernas e pés atrofiados. Lá fora, outros fazem hidroterapia na piscina aquecida. O clima é de intimidade e animação. As mulheres trocam receitas ou falam sobre os netos. Os homens discutem política ou futebol e olham discretamente o corpo jovem das fisioterapeutas, realçado pelo uniforme de malha colante.
No espaço reservado aos acompanhantes, à beira da piscina e com vista para o salão, há cadeiras confortáveis e uma mesa com chá, café e biscoitos. Minha mãe escolhe um lugar à sombra, serve-se de café e começa o bate-papo com alguém próximo. Às vezes, aponta para mim, orgulhosa. Quando não está conversando, apenas me observa.
A sessão tem início com vinte minutos de analgesia, propiciada por deliciosos choques elétricos de baixa intensidade na parte direita do corpo. Seguem exercícios de alongamento e reabilitação muscular, que, acabo de descobrir, só terão resultado a longo prazo. As primeiras dez sessões vão se desdobrar em dez, outras dez, mais dez — a marca dos cem não é novidade por aqui.  Felizmente, paciência é o meu ponto forte.
Ao final, minha babá comenta:
— Esse tal de Parkinson não te vence, filha.
Enquanto ela estiver ao meu lado, sou mesmo invencível.

Agosto de 2012

Mãe Mar



Luci Afonso

Andamos lado a lado na praia vazia, catando as raras, minúsculas conchas trazidas pelo mar. Hoje faço cinquenta anos. Ela tem setenta e ainda cuida de mim:

— Movimenta o braço! Pisa na água! Cadê a bolinha?

Ela insistiu muito para que eu viesse nesta viagem. Providenciou reservas, passagens, estada. Andou de avião pela primeira vez, para que pudéssemos ficar vinte dias em Guarapari, conhecida pelas propriedades medicinais das areias monazíticas. O atual nome da cidade, que significa “armadilha de pássaro”, e o antigo, “garça manca”, são adequados à minha situação.

— Você precisa se mexer, sair do lugar! — ela incentiva.

Estas férias são minha última esperança de retomar a vida normal. Após o diagnóstico, sinto muito desânimo e saio pouco. Não dirijo mais, só ando de táxi ou carona. Não me adaptei aos remédios, não comecei a fisioterapia, não estou fazendo atividade física, que supostamente me traria bem-estar. Não, não, não. Continuo me perguntando: por que eu?

— Cansou? Senta aí na água e enfia a mão na areia. Vou buscar uma água de coco.
Os turistas começam a chegar, entre eles, minha irmã mais nova, seus filhos e o meu, os três adolescentes. Trazem barracas, cadeiras, caixas de isopor. Os ambulantes já circulam, oferecendo produtos inimagináveis.

— Olha que linda a tatuagem! Você vai no caiaque ou no banana boat primeiro? Espera que eu vou tirar sua foto.

Vejo um casal de velhinhos se preparando para o banana e me arrisco a acompanhá-los. (Ouço a mulher dizer ao companheiro: quero experimentar tuuudo!) Somos rebocados até a lancha, que vai atingindo velocidade à medida que se distancia. Os velhinhos riem alto enquanto somos sacudidos pelas ondas. Esqueço por um instante minhas preocupações e descubro que estou viva. O vento, a água, o sal, o sol... viva!
A silhueta esguia me acena da praia. Na volta, ando de caiaque, faço uma meia-lua de henna no tornozelo e enfeito o cabelo com trancinhas de tererê. Provo também o espetinho de peroá e o pastel de bacalhau. Estou... viva. Quero... tudo.
— Você vai ficar boa — ela garante, depois de massagear meus pés à noite. (Te amo, mãe. Eu também, filha, pensamos.) Ela ajeita a coberta e apaga a luz, acariciando o ventre morno que ainda me abriga. Amanhã caminharemos de novo na areia aquecida pelo primeiro sol. Não desisto. Quero voar.

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 Julho de 2011

terça-feira, 2 de julho de 2013

Aceita-se





Luci Afonso



Aprendi cedo a fazer trocas. Um silêncio por uma aprovação, um sorriso por um carinho, uma dor por um doce, um dente por um ioiô, um ioiô por uma bicicleta.


Aos sete anos, ganhei de Natal um bambolê e a primeira bicicleta. Não dei importância ao primeiro, mas fiquei fascinada pela segunda. Aprendi a andar nela sozinha, no quintal de terra onde antes morava nosso cachorro louco, que teve de ser morto a tiro de espingarda. Agora o lugar era só meu, e eu aproveitava para fazer coisas escondidas, como levar um tombo após o outro. Até que, num domingo depois da missa, veio a inspiração:

— Meu Deus, se o Senhor não me deixar cair, vou beijar o chão três vezes!

Deus ouviu minha súplica, porque na primeira tentativa me equilibrei o suficiente para pedalar até o muro. Renovei o pedido em voz alta e fui atendida. Gritei, e não caí mais. Ninguém presenciou o milagre, por isso a surpresa foi geral quando, naquele dia mesmo, ainda com o gosto de terra, comecei a me exibir na rua.

A proeza causou inveja no meu irmão Porquinho (alguns o chamavam de Leitão), que passou a roubar a bicicleta para andar com os amigos. Se eu tentava recuperá-la, era recebida a pedradas, que nunca acertavam, mas garantiam o domínio masculino da brincadeira.

Após uma semana, já conformada com o bambolê, estranhei quando Porquinho me procurou com jeito de negociante:

— Você tem um dente mole, né?

— Uai, você quer o meu dente?

— Não, bobona, eu quero é o ioiô.

O molar superior estava quase caindo, mas eu trancava os lábios quando alguém se aproximava com o barbante. Havia, na época, uma campanha da prefeitura para incentivar a extração de dentes de leite: “Um dente por um ioiô”.

— Você me devolve a bicicleta?

— Devolvo.

Na manhã seguinte, entrei na fila que dava voltas na pracinha. Quando chegou minha vez, escancarei a boca e deixei que o homem de branco puxasse o dente. Sangrou sem dor. Chorei de alegria: minha bicicleta estava salva.


Passados quarenta anos, a voz suave da neurologista explica que minha condição vai se agravar com o tempo, mas que há grande esperança de cura com o desenvolvimento das células-tronco embrionárias. Dói sem sangue. Não ganho ioiô. Não há trocas, somente a pedrada certeira de Deus.
Novembro de 2011


(Imagem: http://www.baciadasalmas.com/2009/ioio/)