quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Slow


Luci Afonso

O ambiente no ônibus era tenso. Tínhamos acordado de madrugada para chegar a Washington ainda de manhã. Todos estavam sonolentos e com fome, pois o breakfast seria servido num restaurante na primeira parada, após duas horas. Era domingo. Eu estava sozinha, num dia particularmente difícil. Minha prima, que me acompanhava, resolvera ir também de ônibus a um outlet em Nova Jersey para trocar o par de tênis da filha. Havíamos andado a cidade inteira atrás desse tênis. Ela não desistiu.
O guia, Antonio, estava pouco inspirado: sentou-se e não falou até chegarmos ao restaurante. Depois de comer, pareceu despertar e disparou a falar sobre os lugares por que passávamos. Estava muito, muito frio. Achei a cidade belíssima. Visitamos os pontos históricos, incluindo os memoriais de guerra, o Memorial de Lincoln, a Casa Branca e o Capitólio.
Antonio andava depressa, quase correndo, por causa do frio e do horário. O grupo tentava acompanhá-lo, e eu, claro, era sempre a última a descer e a subir novamente no ônibus. Eu calçava uma bota linda, mas pesada, que eu comprara no Brasil, e cujo zíper fechava só até a metade —não era defeito, era modelo. Isso a tornava ainda mais pesada e meu passo, mais lento.
Na segunda parada, ele pegou meu braço e me conduziu à frente do grupo:
— A senhora é mais lenta. Deixe-me ajudá-la.
Nas paradas seguintes, ele me esperava na porta do ônibus e me levava à frente do grupo até o local da visita. Outras pessoas tentaram me “ajudar”. Um jovem casal puxou o zíper da minha bota, pensando que ele fecharia inteiro. Um casal mais idoso certificava-se de que eu estava bem agasalhada a cada descida do ônibus.
Passei a me esconder no meio das pessoas para evitar a “ajuda”. Antonio desistiu e continuou seu trabalho. No final da tarde, chegamos muito atrasados ao Smithsonian Museum. Enfrentamos uma fila imensa. Ele pegou meu casaco e minha bolsa e se dirigiu ao segurança na entrada. Este não permitiu que ele pusesse meus objetos na esteira; teria que ser eu mesma.
— She’s slow (Ela é lenta.) — Antonio quis justificar, mas foi barrado pelo guarda. Contrariado, devolveu minhas coisas e voltou para seu lugar.
 Nosso guia repetiu o dia inteiro que eu era lenta. Por que não calei sua boca desde o início? Bastava dizer:
— Eu tenho Parkinson!
Não tive coragem. Tive medo de chamar ainda mais a atenção do grupo. Tive vergonha. Vontade de chorar. Minha acompanhante me abandonara para trocar um par de tênis vagabundo. Eu me sentia a pessoa mais insignificante do mundo. Eu tinha Parkinson. Eu estava sozinha. Por alguns momentos, me senti vítima do mundo, até que me levantei da poltrona do ônibus e disse a Antonio, de forma que os outros também ouvissem:
— Eu tenho Parkinson!
Ninguém falou mais durante o retorno.
O tênis que minha prima tentou trocar havia saído de linha. O frio de Washington me causou uma bronquite que durou meses após minha volta ao Brasil. Os guias turísticos continuam pegando no pé, ou no braço, de senhoras de meia-idade que andam devagar. A impaciência e o desrespeito chegam a vários graus abaixo de zero em todos os cantos do mundo.

Imagem: Arquivo pessoal

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